O século XIX conheceu algumas das mulheres mais empreendedoras, visionárias e controversas para o seu tempo no mundo do vinho. Depois de enviuvarem arregaçaram as mangas e criaram as marcas que perduram até aos dias de hoje: Ferreirinha, Clicquot, Pommery e Penfold. O artigo de hoje é sobre elas, mulheres que marcaram a diferença no universo do vinho.

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Dona Antónia Adelaide Ferreira

 

Começamos por olhar para a nossa casa, num país e numa época onde as mulheres estavam destinadas à subserviência, à iliteracia e à falta de autonomia financeira, Dona Antónia Adelaide Ferreira (1811-1896) geriu o negócio do Vinho do Porto sob revoluções, guerras civis e mais de 20 anos de praga de filoxera (praga mais devastadora da agricultura mundial ). Assumiu a gestão do negócio fundado pelo seu bisavô em 1751, após a morte do seu primeiro marido em 1844 com o aval do seu pai, tornando-se a única proprietária após a sua morte. O Vinho do Porto foi o principal produto de exportação português até 1930, representado três vezes mais a quantidade do produto mais exportado actualmente, a cortiça.

Comprou quintas aos seus competidores quando conheceram dificuldades, competiu com os ingleses e tornou-se a maior proprietária do Douro aumentando as suas quintas de 3 para 30. Quando morreu em 1896 era a mulher mais rica de Portugal, com uma fortuna superior a 3.5 milhões de libras esterlinas. O nome que ficará para sempre indissociado do Vinho do Porto, Ferreirinha, foi-lhe atribuído graças à sua benevolência e caridade.

 

Em França existem dois nomes que mudaram a forma de se consumir Champagne: Veuve Clicquot e Madame Pommery.

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Veuve Clicquot

 

Nicole- Barbe Ponsardin nasceu em Reims em 1777 e casou aos 20 anos com o herdeiro da casa Clicquot fundada em 1772, François-Marie Clicquot. Quando ficou viúva em 1806 o negócio de Champagne apresentava tantas dificuldades que o seu cunhado decidira acabar com o mesmo. A primeira missão da Grande Dame, como ficou conhecida, foi convencê-lo a deixar gerir  o negócio que presidiu até à sua morte em 1886. É lembrada por 3 grandes contributos:

  • O desenvolvimento do processo de remuage sûr pupitre, com o seu chef de caves Antoine- Aloys de Muller (processo que podem consultar no artigo sobre o Champagne);
  • A internacionalização do Champagne para a Rússia – Durante a ocupação prussiana de Reims, Clicquot abriu as suas caves às tropas ganhando a devoção das mesmas pela bebida. Durante as guerras napoleónicas o Champagne e o vinho francês esteve proibido na Rússia. Quando as hostilidades cessaram já Clicquot e o seu comercial, Louis Bohne, tinham um navio Holandês ,o Gebroeder, carregado com 1o ooo garrafas com destino à Rússia, ao qual se seguiram mais dois, garantindo que não havia outro vinho a bordo. Ciente da preferência dos Russos pela doçura, Clicquot desenvolveu um estilo mais doce. Este empreendimento tornou-se o ponto de viragem para que Clicquot fizesse a sua fortuna representado mais de 70% da sua produção, situação que se manteve até à queda dos czars.
  • O amarelo alaranjado que predomina na marca é o mesmo da cor das gemas dos ovos das famosas galinhas de Bresse (região francesa). Além da associação com a cor, criando assim uma diferenciação do seu produto, Clicquot desenvolveu acções legais contra quem tentasse denegrir o seu nome ou utilizar as suas iniciais de forma fraudulenta: e conseguiu multas e condenações!

 

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Madame Pommery

 

Nascida em 1819 Jeanne-Alexandrine Melin casa em 1840 com Louis Alexandre Pommery e fica viúva em 1858. Invulgarmente culta para o seu tempo, estudou em colégios privados em Inglaterra e em França e pautou o desenvolvimento do seu negócio pelo princípio da qualidade. Atreveu-se a explorar o mercado de consumo Inglês e contratou Adolf Hubinet como seu gestor de exportação, abrindo representação em Londres para desenvolver o seu trabalho.

Conhecedora das preferências de consumo dos ingleses, deixou de produzir vinhos tranquilos para se dedicar à produção do Champagne desenvolvendo o estilo Brut, Seco (os estilos mais vendidos actualmente são os Brut e Extra Brut).

Construiu a sua casa em Reims à semelhança das casas dos seus dois maiores clientes ingleses e usou a estrutura inferior para construir as galerias subterrâneas das quais fez adega. Recusou sempre a descida de preço do seu produto para entrar ou ganhar quota de mercado optando por um posicionamento de luxo, distinção e acesso de elites.

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Casa Pommery em Reims

 

Levou ainda a cabo uma acção de marketing directo, assinando as cartas dirigidas a potenciais clientes na Bélgica. Madame Pommery morreu em 1890 e deixou um legado de aumento de produção de 45.000 garrafas em 1858 para 2.25 milhões de garrafas por ano!

 

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Mary Penfold

 

Mary Penfold, inglesa, acompanhou o marido, médico de profissão, na mudança para a Austrália em 1844. Dr. Christopher Rawson Penfold acreditava nos benefícios do vinho e levou consigo 50 pés da casta francesa Grenache. Acabou por se dedicar mais ao negócio do vinho do que à sua principal profissão, tendo tido ajuda feminina ao longo do processo: da sua mulher e de Ellen Timbrell, assistente de Christopher e criada pessoal de Mary. Após a morte do marido em 1870 Mary tomou conta do negócio e sob a sua gestão a marca Penfolds cresceu e tornou-se uma das mais  proeminentes produtoras de vinho. Mary passou de 8 ha plantados pelo marido para mais de 400 ha, representando 1/3 da produção de vinho do sul da Austrália e garantindo presença internacional.

 

Chegados à contemporaneidade, termino com o contributo que é talvez o mais emblemático na apreciação da qualidade do vinho. A Drª Ann Noble foi a responsável pela invenção da Aroma Wheel, a Roda dos Aromas, uma codificação de 132 palavras e frases descritivas dos aromas e sabores do vinho. A roda é composta por três círculos que partem das impressões mais gerais (e.g. fruta, vegetal) para as mais particulares (e.g. tropical) até à identificação mais específica (e.g. ananás)

 

aroma wheel

 

 

Foi a primeira mulher a integrar o departamento de Enologia da Universidade de Davis na Califórnia. A Roda dos Aromas veio traduzir para uma linguagem objectiva e acessível a todos, um dos principais critérios de avaliação sensorial do vinho e da qualidade. E passo a palavra à Drª Ann Noble:

 

 

Porque naturalmente há muito mais a dizer e tantas outras mulheres continuam a fazer diferença no universo do vinho nos nossos dias, fica a sugestão de leitura  para quem queira aprofundar o tema:

 

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(2006) Ann B. Matasar – Women of Wine – The Rise of Women in the Global Industry – University of California Press