Foram três horas de viagem à época dos descobrimentos, às invasões francesas, aos anos 80 até chegar aos dias de hoje, guiadas pelo exímio contador de estórias que é Vasco d’ Avillez, o actual presidente da Comissão Vitivinícola da Região de Lisboa, outrora presidente da ViniPortugal e que tem acompanhado a evolução da produção do vinho português nos últimos 45 anos, mais do que os que eu tenho de vida!

Faço desde já a minha declaração de interesses e deixo claro que é para mim um privilégio escutar alguém que olha para o vinho como algo da nossa vida de todos os dias e um elemento indissociável da nossa matriz cultural. Será “culpa” dos Tartessos que trouxeram a vinha para o nosso território e dos Romanos que plantaram vinhas de Norte a Sul para pagar 20% dos salários em vinho (1/5), dando origem à palavra que hoje conhecemos como Quinta? Terá a ver com o facto de o escorbuto não afectar a tripulação das embarcações quando havia vinho a bordo e por isso passou a ser obrigatório um copo de vinho por dia? Ou pelo facto de o vinho que azedava a bordo ter sido utilizado para marinar peixe cru, criando assim o escabeche e permitindo que as tripulações tivessem o que comer?

São inúmeras as estórias que o vinho permite contar, assumindo-se também como embaixador de uma região, como é o caso de Bucelas que se popularizou junto da corte inglesa devido a uma menção na peça Henry VI (parte II) de William Shakespeare (o vinho de Charneco), durante o período Isabelino (1558-1603), e mais tarde com o Duque de Wellington durante a sua intervenção nas Invasões Francesas (início séc. XIX) ficou conhecido como o Reno Português (dada a sua semelhança com os vinhos alemães produzidos nessa região: os Rieslings).

 

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A Quinta da Murta assina os seus vinhos com a referência ao dramaturgo e poeta inglês

 

As regiões da Região de Lisboa

Desde 1933 que a região de Lisboa se encontra demarcada mas, demorou até ser baptizada com o nome que tem hoje, passando por designações pouco claras para os consumidores como Oeste e Estremadura (que não só se confundia com a área geográfica que se estendia até Setúbal como com a Extremadura Espanhola). Há 10 anos que assumiu o nome de Região de Lisboa, o mesmo usado pelos Ingleses (Lisboa Wines) e aqui existem 9 Denominações de Origem Controlada (DOC): Alenquer, Arruda, Bucelas, Carcavelos, Colares, Encostas d’Aire, Lourinhã, Óbidos e Torres Vedras. Lisboa prima pela diversidade da exposição ao Atlântico, da influência da corrente quente do Golfo, das Serras de Sintra, Montejunto e Candeeiros e pelo lado Continental.

Cabe à CVR Lisboa garantir a certificação do Vinho Regional e DOC assim como a defesa do território que representa. Em Lisboa produz-se três tipos de vinho, o Vinho (anteriormente conhecido como vinho de mesa) e cuja competência de garantia de consumo é do IVV, o Vinho Regional produzido dentro da região de Lisboa, com as castas aceites na região, conhecido como IG (Indicação Geográfica) e o DOC a certificação que diz respeito a uma área geográfica mais pequena, com castas e tipos de solo bem definidos. Actualmente apenas 25% da produção da região está certificada como Regional ou DOC.

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Vinho Leve

Existem apenas duas regiões em Portugal produtoras de Vinho Leve: Lisboa e Tejo. E o que é o Vinho Leve? Pela proximidade com o Oceano Atlântico alguns vinhos aqui produzidos não atingiam o teor alcóolico mínimo para ser considerados como vinho (11º). Uma vez que representava um problema para os produtores e se trata de uma característica inerente a estas regiões, foi criada em 1985 a designação Vinho Leve, que se caracteriza por um teor alcóolico entre os 9º e os 10º em Lisboa e 9,5º e 10,5º no Tejo.

DOC’s em vias de extinção?

Colares e Carcavelos são as DOC que apresentam mais razões de preocupação. O avanço do urbanismo e o desinteresse em métodos de produção mais humanos do que mecânicos, deixa estas regiões em risco. As vinhas conhecem uma diminuição do número de hectares e não é apenas o vinho mas todo um património histórico- cultural que está em risco. É graças à iniciativa da Câmara Municipal de Oeiras, que mantém e vinifica as vinhas, que o vinho fortificado de Carcavelos, feito a partir das castas tintas Castelão e Preto Martinho e brancas Galego Dourado, Ratinho e Arinto, continua a chegar até nós. Não deixa de estar, no entanto, dependente da vontade das Presidências de Câmara futuras preservá-lo ou deixar que desapareça!

 

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Villa Oeiras – Vinho generoso de Carcavelos

 

Colares tem uma particularidade muito interessante, ao contrário da maior parte das vinhas que conhecemos, as vinhas de Colares estão em chão de areia, um meio de defesa contra a praga filoxera (insecto que na areia não consegue fazer túneis) e que obriga a abrir buracos profundos para que as raízes das videiras procurem argila para se fixar. Em 1870 este trabalho,  que dá pelo nome de unhar a vinha, era feito por homens que chegavam a escavar buracos com 8m de profundidade. Dado o risco que a tarefa representava, os homens desciam com um cesto na cabeça, o que numa situação de desabamento de terra lhes garantia cerca de 30mn de oxigénio. Estas vinhas rastejantes estão protegidas por paliçada de cana e como vinha rastejante têm tendência a apodrecer a uva sendo necessário “levantar a vinha”, isto é, colocar una cana de 50cm para que deixe de tocar no chão. Mas a vida difícil destas videiras não acaba aqui: dada a proximidade do chão os animais têm aqui um petisco ideal. Foi a sabedoria de quem trata destas vinhas que percebeu que o cabelo humano servia de repelente natural. Actualmente resistem pouco mais de 10 hectares com a casta tinta Ramisco e branca Malvasia.

 

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Vinha de Colares em Chão de Areia – Créditos: airdiogo

 

O futuro da Região de Lisboa

Com 65% da produção a ser exportada, os mercados do Norte da Europa, Brasil, Estados Unidos e Rússia afirmam-se como destinos importantes para a região de Lisboa. A ligação com a Finlândia, Suécia e Noruega remonta aos tempos da EFTA (Associação Europeia de Comércio Livre) nos anos 60, para onde se exportava a granel para ser filtrado e engarrafado. Com a entrada na UE em 1986 a exportação para a Escandinávia continuou mas, passou a ser engarrafada em território nacional e a procura maior é no vinho tinto. Devido aos hábitos de lazer destes países com embarcações de recreio, Lisboa soube ainda responder à necessidade de encontrar uma alternativa ao vinho em garrafa, que pelos perigos subjacentes à utilização do vidro neste contexto, passou a exportar vinho de qualidade no formato bag-in-box para estes momentos prazenteiros.

Vasco d’Avillez acredita que a região tem um futuro promissor dado o nível de qualidade e sofisticação que tem sido desenvolvido nos últimos anos e a dinâmica que as gerações mais novas têm imprimido na região. Há ainda muito espaço de crescimento, visto que 75% da produção ainda não é certificada, e um grande potencial de desenvolvimento económico para a região por via do néctar mas também do Enoturismo. Lisboa, pela sua diversidade, tem a capacidade de dar resposta a diferentes tipos de consumidores e diferentes harmonizações gastronómicas.

Como o bom conhecimento é aquele que se partilha deixo-vos uma sugestão de leitura da autoria de Vasco d’Avillez, em que podem ficar a conhecer inúmeras curiosidades e estórias em torno do vinho, assim como sugestões para vos acompanhar ao longo dos 365 dias do ano.

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Celebrar, Vasco d’Avillez, Livros Horizonte, 2014